sábado, 24 de dezembro de 2016

OS ÚLTIMOS DIAS DO SUPERMAN, POR ALAN MOORE. ou: como se escreve quatro histórias que valem por uma fase inteira.
Alan Moore. Falamos esse nome como se recitássemos um mantra sagrado. Nós, leitores de quadrinhos, e mais especialmente dos quadrinhos da DC Comics, devemos muito a esse artista.
E é uma dívida contraída aos poucos. Bem aos poucos mesmo. Com exceção de Monstro do Pântano, Moore jamais permaneceu mais que um ano em nenhum outro título da editora. Mas quando pousou seu gênio em qualquer personagem que fosse, criou momentos de fazer inveja a muitas fases de hoje. Vejamos.
Escreveu apenas duas pequenas histórias para o Lanterna Verde. E o excelente Geoff Jonhs foi atrás disso para criar a maior fase de Hal Jordan e companhia, nos quase 10 anos em que escreveu muitas histórias que bebiam na fonte de Moore.
Com o Batman da mesma maneira, escreveu tão poucas histórias quanto, mas uma delas viria a ser tornar um dos maiores e mais festejados clássicos de Batman de qualquer tempo: A Piada Mortal.
Para o Superman foram apenas quatro histórias. Estas histórias, publicadas pela primeira vez aqui no Brasil pela Editora Abril em Super-Homem #33 (de março de 1987) e em Super Powers #21 (de maio de 1991) são: O que aconteceu ao Homem de Aço?, em duas partes; A linha da selva e Para o homem que tem tudo. 

Na revista Super-Homem foi publicado A linha da selva e em Super Powers as outras três. E já tiveram, merecidamente, desde então várias reedições em outros formatos e por outras editoras. No que diz respeito à qualidade da apresentação da edição, a da Panini ganha de longe.


A linha da selva conta com a participação do Monstro do Pântano, que Moore escrevia na época e saiu em DC Presents #85 de 1985. No conto, Clark Kent é acometido de graves distúrbios físicos ao ser exposto à radiação de um fungo kryptoniano. Apenas a intervenção de Alec Holland, o Monstro do Pântano, o faz recuperar a saúde.
Para o homem que em tudo foi apresentada em Superman Annual #11 de 1985. Aqui, através de uma toxina vegetal, o vilão Mongul consegue fazer o Homem de Aço cair em um estado catatônico mortal, aonde a sua morte vem através de seu maior sonho.
O que aconteceu ao Homem de Aço? foi publicada originalmente em 1986, nas revistas Superman 423 e Action Comics 583 e narra os últimos dias de Clark Kent como Superman.
Essas histórias tem em comum um elemento que parece que os autores de hoje se esqueceram, que é tornar o Super-Homem mais humano, não digo homem, mas humano, enquanto um adjetivo, uma qualidade ou um defeito.
Superman é um personagem difícil. A dificuldade reside do fato dele encarnar determinadas ações que hoje são consideradas ultrapassadas; na verdade, a péssima consciência de nossa época tornou sua história não muito apreciável para a mentalidade atual. É um problema que vai desde o fato da força quase sem fim de Kal-El até tocar aos seus princípios rigidamente morais. A nossa época prefere a violência como primeiro “diálogo”, mas Clark Kent é um jornalista e sua área são as ideias e o debate. Porém há algo de atual nele. Esse algo é a cultura humana que ele absorveu através de Smalville. Essa cultura o preencheu de elementos que a sociedade kryptoniana esqueceu. As mais extraordinárias histórias do Superman são exatamente essas em que o autor assume esse lado do personagem.
Aquele lado super, que puxava galáxias inteiras atrás de si, sorrindo e feliz, e que com certeza quem é fã do personagem sabe amar, nosso tempo parece que, infelizmente, ver com maus olhos. Deve-se humanizar os personagens para que estes tenham entrada na vida das pessoas. Na época da criação de Superman era exatamente o contrário que agradava, mostrar Superman com cada vez mais poderes fazia a popularidade desse ícone subir geometricamente.
Felizmente ele tem em seu nome tanto o super quanto o homem. Então se pode trabalhar as duas coisas. E Moore caminha com desenvoltura em ambas.
É típico dele colocar os heróis em situações limites, e Watchmen é cume nesse aspecto. Mas Batman se ver ao ponto de matar o Coringa em A piada mortal, enquanto Gordon quase enlouqueceu vendo fotos de Bárbara sendo estuprada pelo Coringa.
Na Linha da Selva Moore testa os limites do homem sem limites fazendo-o necessitar de nada mais nada menos do que um simples repouso no colo da mãe-natureza. Superman aqui é o homem urbano, tecnicista e especializado que sofre. O Monstro do Pântano é o conforto da natureza mais uma vez colocada à disposição da vida. É uma história linda, cheia daquela inspiração confiante de Moore.
Os desejos mais triviais do mundo são exatamente o que o homem que tem tudo não tem ou não pode realizar, a não ser quando anestesiado até a morte por uma planta alienígena. É essa a história de Para o homem que tem tudo. No dia de seu aniversário nosso valoroso super-herói recebe quatro poderosas visitas: seu melhor amigo Batman, seu filho adotivo Robin, a Princesa das Amazonas, a Mulher-Maravilha, e um vilão espacial, Mongul. O Robin em questão é o segundo, Jason Todd. Cada um deles vem trazendo seu presente, como os reis magos ofertando suas oferendas simbólicas para Jesus.
Mas aqui o aniversariante já é um homem adulto e, antes que seus amigos tivessem chegado, Mongul conseguiu colocá-lo numa espécie de transe alucinógeno provocado pelo contato com uma planta espacial, a clemência negra (estaria Moore lembrando seus passeios pela Cannabis Sativa?). De qualquer forma descobrimos a alma de Clark. Sua vontade mais íntima, mais pessoal e mais perfeita é ter uma família. No entanto, se ele não sair do transe a tempo, poderá permanecer assim nesse estado para sempre.
O que aconteceu ao Homem de Aço é uma daquelas histórias que, se não existissem, teriam que ser sonhadas por alguém, pois é a história mais emblemática de Moore dentro do mundo do Superman. Em duas partes soberbas, revisitamos vários aspectos da mitologia do personagem: a Fortaleza da Solidão, Krypto, Supergirl, a Legião dos Super-Heróis, os vilões, Metropolis, o Planeta Diário e seus funcionários, Smalville (através de Lana Lang). É uma história de profunda tristeza com um piscar de olhos famoso no final.
Um jornalista decide entrevistar Lois sobre os últimos dias do Homem do Amanhã. Ela está casada e tem um filho. O Superman desapareceu do mundo e nunca mais deu notícias. Lois conta os fatos trágicos que encerraram a carreira mais super-heroica de todo os tempos. Um a um, os personagens que marcaram a vida de Clark vão desaparecendo. Num turbilhão que nem mesmo ele consegue escapar, sua identidade é revelada e várias pessoas próximas são assassinadas. Por fim o próprio Superman acaba por matar o causador de todo esse drama, mas se retira, entrando em uma sala com kryptonita e fechando a porta pós si.
É uma história comovente. Vê-lo assim completamente cercado. No último quadrinho da primeira parte, ele senta e chora acompanhado de seu cão fiel, Krypto, que também se entristece. É lindo e tocante demais.


Tudo isso para mostrar a última história pré-Crise de Superman. É um adeus não só para aquele Superman, mas para uma época que começou em 1938 com Action Comics #1. E é o testemunho de uma mente, a de Moore, que sempre amou esse personagem.
E é tristemente notável que ninguém até hoje tenha ido atrás dessas histórias para compor uma fase decente para o primeiro e o maior dos super-heróis. Mas é exatamente isso, como exposto acima, a criação maior de Siegel e Shuster é de extrema dificuldade para os dias de hoje, e isso depõe contra os dias de hoje e não contra Superman.
Para se fazer justiça a esse personagem apenas grandes escritores, pois apenas eles podem extrair, da poderosa e grande mitologia do kryptoniano, histórias que sejam da mesma estelar categoria de Clark Kent.
E isso nós temos aqui nessas histórias do grande escritor britânico. Poesia. Drama. Comédia. Temos a alma do Superman revelada de uma maneira singular; presenciamos seu desespero em seus últimos momentos; e o melhor é o fim, quando nos tornamos cúmplices de uma felicidade que Clark Kent merece ao lado de seu maior amor assim, em um piscar de olhos. É essa a sensação que Moore nos passa de forma refinada, simples e direta. Familiaridade. A gente sabe afinal o que houve com o Homem de Aço. Parece que somos amigos do casal. Momentos assim só se conseguem com grandes escritores em sua inspiração mais apurada.


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