quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

ASILO ARKHAM: UMA SÉRIA CASA NUM SÉRIO MUNDO -
Batman, Coringa e o Asilo/Alice, o Coelho e o País das Maravilhas.
Dificilmente hoje podemos duvidar que contos de fadas foram escritos por mentes doentias.
Cada página de qualquer conto de fadas encerra em si um mundo perturbado completo de críticas sociais, políticas e mesmo sexuais.
Mas foi preciso a modernidade para que essa análise inusual do mundo do "Era uma vez" de Branca de Neve e companhia resplandecesse com uma luz mais negra, como um sol em eclipse total.



Quando Grant Morrison pousou suas asas sobre Gotham, sua primeira preocupação não foi o seu filho mais rico (ou mais heroico), foi uma instituição para lunáticos impiedosos sedentos de sangue.
Historicamente o nome Arkham está ligado ao escritor H. P Lovecraft, cujos contos de terror e loucura são ambientados nessa cidade fictícia. Nos quadrinhos, a área geográfica passou de uma cidade para um asilo, mas preservou, além do nome em homenagem à criação lovecraftiana, a disposição de ser moradia de insanos e perturbados.
Morrison, como habitualmente e habilmente faz, narra dois contos ao mesmo tempo. O primeiro, é sobre uma rebelião no Asilo. Os detentos fizeram vários reféns e exigem a presença de Batman. O outro, em flashbacks, é sobre Amadeus Arkham.
Inaugurado por Amadeus Arkham, o sanatório logo ganhou fama de assombrado. Pessoas afirmavam que uma criatura assustadora caminhava pelos corredores, ao passo que a mãe de Amadeus assegurava que todas as noites um enorme morcego voava em seu quarto. A loucura logo tomou posse da família Arkham. Desgostoso com o caminho escuro que a mente de sua mãe estava tomando, Arkham decide conversar com místicos. Conhece Alaister Crowley, que desvenda-lhe os mistérios do tarot. Conversam sobre magia e loucura. No Asilo, que também serve como residência para a família Arkham, a loucura, que é herança dessa família, cobra mais uma vítima. Amadeus ver a mãe morta e imagina que ela agora está livre de alguma possessão sobrenatural, será que foi um matricídio? Amadeus também teria o mesmo destino compartilhado por sua família: adormecer numa ilha isolada cercada pela paz da demência.
Quando a história se inicia, lemos uma citação de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carrol.
ALICE: Mas eu não quero me encontrar com gente louca.
COELHO: Mas você não pode evitar isso. Todos somos loucos aqui... Eu sou louco... Você é louca...
ALICE: Como que sou louca?
COELHO: Deve ser. Ou não teria vindo aqui.
O destino enquanto simbolismo começa a tecer suas teias. Ninguém vai a qualquer lugar que seja se não for por uma atração irresistível em si mesmo, uma identificação, com o ambiente. E a nossa vontade? Nosso livre-arbítrio? Morrison parece nos dizer que existem coisas que transcendem nossa vontade. No mais íntimo de nós, nossas escolhas já foram dadas, o tempo e as circunstâncias se encarregam de mostrá-las.
Batman não vai ao sanatório por acaso ou por que os reféns assim serão soltos. Ele vai por uma necessidade de se irmanar com seus iguais. Hoje ninguém duvida que o super-herói de Gotham sofra de problemas psicológicos graves. E estar no Asilo é como uma festa de iguais. Uma comemoração.
Quando Batman chega é saudado pelo Coringa. Percebe que o lugar está rodeado por sal. No espiritismo, esse elemento afasta entidades indesejáveis. Batman está no lugar certo. Ele entra com tranquilidade.
Mas o sal também tem outro simbolismo e dessa vez mais palpável.
O Coringa afirma: "Não sou bom o bastante para ser comido?" Fazendo referência ao sal no lugar. É a primeira insinuação homo afetiva na obra. As outras surgem em seguida. O Coringa segura com força as nádegas de Batman e pergunta: "Toquei em algum nervo exposto?" E depois; "Cadê o Robin? Já começou a se depilar?"
O Coringa é um personagem que podemos categorizá-lo como um trickster. Ou seja, um malandro, um vagabundo, porém dotado de incrível sabedoria. Nas mitologias esse personagem aparece sob vários nomes: é Loki para os escandinavos, Mercúrio na mitologia romana, entre os Iorubás ele é Exu.
Morrison coloca no Coringa essa característica vivaz e chocantemente alegre que esses personagens possuem. Quase sempre em suas mitologias, são vistos como seres que merecem pouca confiança, pois são burlescos e mentirosos e gostam de brincar das maneiras mais inusitadas, de preferência falando com conteúdo fortemente sexual e fazendo gestos obscenos. Uma outra característica do trickster é que ele transita por muitos mundos e pode assumir várias formas e personalidades, uma hora está amigo ou outra hora é um feroz inimigo. Em momento é um adulto em outro é uma criança chorona que pede doces. Hoje é homem amanhã é mulher. Loki gosta de se vestir como mulher. Exu tem sua contraparte feminina a Pomba-Gira e quanto ao Coringa, sua representação em Asilo Akham, em muitos gestos e expressões, varia de um sorriso perverso para atitudes bastante afeminadas.
É interessante essa visão do Coringa como um trickster. Uma das psicólogas do Asilo, Doutora Ruth Adams, fala para Batman que o Coringa na verdade é um ser consciente que explode em mil personalidades, de forma que é impossível definir o que seja o Coringa. E que essa super sanidade do Palhaço do Crime na verdade é a melhor maneira de viver no caos urbano. Sem dúvida é um dos maiores personagens das hqs. Há momentos em que o Coringa se comporta de forma infantil para no quadrinho seguinte assumir uma expressão mais adulta.
Nesse conto o Coringa pode ser identificado também como o Coelho do conto de Carrol. Assim como este guia Alice pelo País das Maravilhas, o Palhaço do Crime guia Batman pelos corredores do Asilo.
Batman é Alice. Sua consciência do mundo em que se encontra é tão marcante quanto àquela da personagem de Carrol. Ele sabe que está em mundo de loucos, mas não pode escapar disso, pois a loucura é herança para algumas pessoas. Para Alice. Para Batman. Mas a loucura de Alice é uma loucura infantil ou infantilizada, embora terrível. Alice se move em um mundo de doces, chás, crianças choronas, mas também de cabeças cortadas, crianças que são espancadas e uma rainha depravada. Batman se locomove através de paredes e corredores escuros, personagens doentes mas também, através do conhecimento psicanalítico dos doutores do Arkham ou do sorriso, ora afeminado ora ameaçador, do Coringa.




A jornada pelo Asilo Arkham é feita em níveis assim como ocorre no livro de Carrol. Cada nível corresponde a uma espécie de "lugar" na mente de Alice/Batman. A imagem da cabeça é uma figura constante nessa história. "Parece que estamos dentro de uma cabeça que nos sonha", diz o Chapeleiro Louco em certo momento.
De baixo para cima, para a cabeça, para o cérebro que organizou tudo aquilo. A última parada de Batman é uma conversa com Cavendish, o diretor do sanatório. Inspirado pelos diários de Amadeus Arkham, Cavendish resolveu chamar o último habitante do Asilo, o Homem-Morcego. A essa altura Batman já está convencido que é louco e resolve colocar sua vida nas mãos de Duas-Caras. Se a moeda cair com a parte lisa para cima, ele sai; se cair com a parte riscada, ele fica.
Pelo destino, Batman deve permanecer no Asilo. Mas Duas-Caras trapaceia e, não mostrado a moeda, afirma que Batman deve sair. A despedida do Coringa é entrecortada por Duas-Caras, que aprecia a moeda que caiu com a face riscada para cima.
Nesse momento, Alice retorna através de uma citação do livro.
Duas-Caras, olhando para a moeda (o verdadeiro destino de Batman) e para a porta que se abre para que o Morcego saia (o destino falso), afirma, como Alice no fim do País das Maravilhas:
"O que importa? Vocês não passam de um baralho de cartas!"
No fim percebemos que Amadeus Arkham é mais Batman do que o próprio Batman. Até certas situações são espelhadas.
Há um momento em que Arkham fala: "Preocupados com meu estado de saúde, alguns amigos me levam à ópera. Parsifal, de Wagner. Eles não compreendem? Não veem que me despedaço em mil fragmentos?"
Nos labirintos de loucura de Batman, este corre em direção ao Crocodilo. Batman então imagina a cena na ópera Parsifal, citada por Arkham anteriormente, onde o personagem título entra na Torre Negra para lutar contra o dragão que há lá dentro, no caso, é um feiticeiro. A cena acolhe com perfeição essa referência, uma vez que Batman está no Asilo, na Torre Negra, encarando uma criatura horrível.
País das Maravilhas e Asilo Arkham se abraçam nessa obra de Morrison, com toques wagnerianos.
Além da cabeça, outra imagem constante na obra é o do peixe. Podemos dizer sim que se trata do maior leitmotif dessa obra. Logo no inicio vemos a figura do signo de peixes, Pisces, dois peixes nadando em direções opostas. Esse símbolo significa reencarnação ou ressurreição para os cristãos, o próprio símbolo do cristianismo é um peixe, e nas religiões orientais, significa a compaixão exercida por Buda diante da vida.
Quando o símbolo é quebrado, o resultado é a degradação do ser. A loucura. A primeira vítima é a mãe de Amadeus. Depois o próprio Amadeus. Os detentos do Arkham. Batman. Todos personagens com histórias de vida desgraçadas e surradas pela existência até o nível da completa insanidade. Porque Pisces também é o símbolo das coisas escorregadias, que não se controlam, que tentamos pegar com nossas mãos porém nos escapam. Nada no misticismo é gratuito. A força que une também é a força que desagrega.
O Coringa enxerga o Arkham como um mundo. E novamente aqui temos Pisces, pois ele também é símbolo de multidões.
Quando a mãe de Amadeus é assassinada, sua imagem pintada executa o símbolo do escaravelho egípcio, os dois pulsos unidos com as mãos abertas, que no antigo Egito era um símbolo que significava a passagem não para a morte, mas para uma outra vida e que nos traz novamente a figura da ressurreição/reencarnação simbolizado pelo signo de peixes.
Amadeus proclama que sua mãe renasceu em outro mundo, "um mundo de presságios e magia e de símbolos misteriosos..." Também é importante notarmos que as mãos e os pulsos da mãe de Amadeus estão envoltos de luz branca.
Asilo Arkham é uma obra sombria, sem dúvida. Mas não é pessimista. É sobre loucura de fato, mais por causa do próprio mundo exterior do que por qualquer outra coisa. É um microcosmos onde se espelham as dimensões de um cosmos maior. Grant Morrison trabalha aqui de maneira a mais introspectiva possível. Não há muita violência externa nessa séria casa. Há uma violência e um horror psicológicos, que nos faz ler o texto e apreciar as pinturas como se estivéssemos de alguma maneira e à medida que o tempo passa entorpecidos.
A melancolia de Morrison aqui caminha com uma desafiadora ironia. No fim, é o Coringa quem manda lembranças para os loucos que estão... fora do Asilo.

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