quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

sábado, 24 de dezembro de 2016



CTHULLU. O chamado de H. P. Lovecraft.


Acabei de ler, pela primeira vez, algo escrito por H.P. Lovecraft. O chamado de Cthulhu. O personagem, segundo informações colhidas a esmo em noites insônitas no emaranhado invisível da net, é a criação maior de seus autor. Trata-se de uma criatura pavorosa que dorme à espreita nos confins abismais dos oceanos e espera, em sua cidade fantasmagórica, o despertar. Esse despertar virá a partir de rituais arcanos e secretos realizados por humanos. Cthulhu é uma criatura imensa, com cabeça de polvo, asas nas costas e garras retorcidas nas mãos e nos pés, sua comunicação, sempre causadora de distúrbios, ocorre telepaticamente.
Parece aterradora e poderia ser na época em que foi escrito mesmo. Mas e hoje? Eu li esse que é tido como mestre do terror, e não senti sequer uma cócega. E não senti sequer algo vagamente perturbador em meu juízo.
Lovecraft insiste, em seu texto, em adjetivos do tipo "sinistro", "caótico", "insano", "secreto", e termos que aparentemente devem causar tais sentimentos. Mas não causa. A palavra "sinistro" presente em um texto não torna o mesmo sinistro. Seria o mesmo que dizer que S/I/N/IS/T/R/O, causa medo. Não causa. A palavra em si não é perturbadora. O ambiente criado deve instaurar medo.
E Lovecraft não consegue criar esse ambiente, essa atmosfera de horror. E ele insiste, e muito, nesses adjetivos. Quase como que quisesse nos convencer que o que ele fala é medonho! Creio que nesse texto a palavra "sinistro" e similares deve aparecer umas cem vezes e com insistência.
Observem Poe. No poema O Corvo não há muitas menções a tais termos, mas a atmosfera nos convence que há algo sinistro acontecendo. Quando o corvo surge, ele é mais assustador do que Cthulhu! Outro poema bastante perturbador é O Morcego, de Augusto dos Anjos, que só peca por querer explicar o morcego no fim. Mas a atmosfera das três primeiras estrofes nos enche de medo e pavor e de sombras. Nesses dois poemas notamos a existência de um mal, de um desequilíbrio, de uma insanidade e de uma realidade que parece estar além de nós, embora seja nós mesmos essa realidade.
A loucura e insanidade, tão reivindicadas pelos personagens de Lovecraft, não tem sequer a centelha das mesmas conforme presenciamos em Poe. A queda da casa de Usher. O gato preto. O retrato oval. Por que esses contos ainda causam medo? Por que esses contos nos fazem sentir a realidade do mal?
Porque são calcados no homem e em sua vida. Lovecraft credita suas insanidades a criaturas exteriores. É primitivo. Transferir a existência do mal e da loucura para entidades fantasmagóricas que vivem em cidades imaginárias, é coisa de humanos pré-escrita. O mal existe, porque o homem existe e não porque Cthulhu está adormecido e será invocado.
O que é um corvo? Apenas uma ave. Causa medo? C/O/R/V/O. Não. Mas quando lemos The Raven nunca mais veremos aquela simples ave da mesma maneira. Eu lembro quando li esse poema pela primeira vez. Não dormi pensando na fineza do mal e da loucura.


O que é Cthulhu? Uma criatura sinistra que surge do mar pavoroso e caótico e provoca insanidade através da telepatia. Causa medo. Não. Nem vampiro hoje causa medo. Descrições como Cthulhu causariam medo em fins do século XVIII, no auge do romantismo fantástico de Hoffmann e similares. Porém o zeitgeist contemporâneo perdeu o medo até de vampiros e de lobisomens.
Apenas crianças teriam de medo de Cthulhu. E podem ter. Estão na idade de se apavorarem com descrições que são sinistras, porque a palavra "sinistra" está lá, porque a palavra "insana" está lá.
Vejam O Pesadelo, de Fuseli. Isso é perturbador. E sabem o que é mais perturbador nesse quadro? O cavalo. Algo tão corriqueiro. Um cavalo! E é mais aterrador do que todas as vezes que Lovecraft insiste que Cthulhu é sinistro, é pavoroso e é insano!
Essa forma de terror de Lovecraft, cheia de adjetivos e sem impacto, estranhamente influenciou muitos bons escritores e hoje até em games há referências às criaturas sinistras, pavorosas, perturbadoras, sinistras e insanas dele. Nesse caso, embora com resultados grotescos, os alunos superaram seu mestre.
Enfim. Conheci Lovecraft. E estou rindo até agora do incrivel Godzilla tentacular dele. Imaginem Godzilla emergindo do mar e destruindo uma cidade. É apenas isso. Cthulhu não personifica nossos medos e angústias, como Poe faz em tudo o que escreve. Como dos Anjos faz no Morcego, como Fuseli faz no Pesadelo. Cthulhu é uma criatura gigantesca que existe. Que é sinistra e é melhor nem mesmo falar sobre ela.


Daria mais certo em Pacific Rim... vejam a gravura! É um monstro assustador! Não adianta insistir em colocar mais do que isso nele, nem seu criador conseguiu.
EU VI O FIM DO MUNDO! Reino do Amanhã, de Mark Waid e Alex Ross
.
INTRODUÇÃO: Uma Era Anabolizada.
Dizer que Reino do Amanhã é a maior história em quadrinhos da década de 90 apenas diz o facilmente constatável – e não apenas porque a década de 90 é a década da imagem e do quadrinho ruim (ou Image), mas também porque essa obra dialoga com esse período, e o condena.
Em 1985, a DC Comics publicou duas obras admiráveis: Watchmen e Cavaleiro das Trevas (para não mencionar Crise nas Infinitas Terras, mas para esse artigo essa saga magistral não tem lugar), essas obras escritas por Alan Moore e Frank Miller respectivamente reinventaram o quadrinho e levaram a técnica à uma explosão e ao mesmo tempo esticaram as possibilidades da narrativa sequencial. A estrutura da narrativa, sobretudo em Watchmen, muitas vezes dialoga com narrativas mais tradicionais para simplesmente delas se distanciar e mostrar um novo e mais maravilhoso caminho. Cavaleiro das Trevas dialoga com o cinema, por mais que os puritanos e afoitos amantes da pureza técnica sequencial possam discordar. Mas essas obras também teriam algo mais em comum.
Seus personagens são seres que vivem em um mundo caótico onde a perda de credibilidade das instituições e dos políticos de forma geral desencadeia uma série de atos violentos e seus heróis (“heróis”, melhor dizendo) são criaturas, homens que vagam feito loucos moribundos segurando placas religiosas (Rorscharch) ou mulheres que carregam na alma a dor e o amor de amar estupradores (a primeira Espectro de Seda e seu relacionamento violento com O Comediante) ambos em Watchmen; ou são psicopatas de direita em um mundo esquizofrênico (Bruce Wayne) ou personagens que se conformam com o caos e servem “a nação” (Clark Kent) em O Cavaleiro das Trevas. Em ambas as obras, sangue e violência tingem a página das hqs de um vermelho cru e real, sem fantasias de finais felizes. Os finais de ambas as obras, por mais que indiquem um final “bom”, são na verdade bastante cinzentos, sobretudo em Watchmen.
Personagens com esse potencial para a loucura e violência e com um discurso moral com dislexia para direitos humanos foi o que mais saltou aos olhos de uma nova geração de criadores na década seguinte. A década de 90! O que dizer dessa década em termos de quadrinhos? Basicamente pensamos na testosterona de personagens mal desenhados acometidos de algo próximo a uma elefantíase artística (Rob Liefeld e o primeiro Jim Lee) ao mesmo tempo em que o discurso sede lugar a uma gritaria palavreada em textos sem sentido e fora de qualquer alcance neural. Esses personagens (os mais emblemáticos de todos são Venon e Carnificina, da Marvel), dominaram uma geração inteira de novos leitores de quadrinhos que pensavam que apenas ser “bombado” e segurar uma arma maior do si mesmo ou ter sempre o biquíni rasgando as cavidades anais fossem arte. Desse período apenas Spawn ainda se mantem, pois foi o único que, embora apresentasse as mesmas disfunções de seus contemporâneos, conseguia unir a isso uma narrativa ótima em histórias que iam além da Image pega em teste de anabolizantes.
As demais criações desse período, são figuras descartáveis de super-heróis sem princípios éticos ou morais que jogavam para o alto qualquer intento de verdade e justiça. Bem, sob certa ótica até que dialogavam, e bem, com a política americana da época.




PARTE 1: Advento.
Mas uma geração assim não poderia passar sem uma crítica, e uma crítica negativa, contra a estupidez institucionalizada. E nenhuma editora poderia fazer isso melhor do que a DC Comics. Por quê?
Verdade e justiça.
Essas palavras, para qualquer amante de hqs do gênero super-herói remetem imediatamente aos icônicos personagens criados entre o final da década de 30 e inícios da de 40 do século XX: Super-Homem (vou me dar a esse prazer de chamá-lo assim, como na minha época de guri gibizeiro), Batman e Mulher-Maravilha, ou à Liga da Justiça inteira por extensão.
Mas nenhum personagem encarna esses ideais de forma tão conscientemente perfeita quanto o Último Filho de Krypton. Essa história de Waid e Ross é dele e é sobre ele, na medida em que analisa conceitos como moral e ética na conduta dos super-heróis.
Não existe personagem que encarne esses ideais como o caipira que se torna jornalista chamado Clark Kent. Bruce é atormentado demais, e isso não é de Miller, está desde a gênese em Detective Comics 27; Diana não é estrangeira, como Kal-El, mas o kryptoniano tem uma bagagem terráquea imensa que Diana não tem. A princesa amazona, embora de uma cultura da Terra, sempre permaneceu isolada do restante da humanidade.



Clark ganhou, graças à educação de seus pais e professores, uma bagabem humanista imensa. Lembro de uma cena de Man of Steel (embora o filme seja do século XXI) em que Clark segura um exemplar de um livro de Platão. Humanismo.
Quando abrimos o numero 1 da revista (Reino do Amanhã é uma minissérie em 4 partes), lemos trechos da Bíblia retirados do Livro do Apocalipse de São João, imagens de uma águia, de um morcego, de raios e trovões saltam aos olhos enquanto lemos os assombrosos relatos do apóstolo. Cada exemplar dessa saga se inicia assim, com uma leitura da Bíblia.


Porque há um tom religioso e grave aqui. É uma obra de leitura pausada, como o movimento lento de uma sinfonia. Meditativa e ao mesmo tempo intrigante. No primeiro número conhecemos um futuro do Universo DC. Os super-heróis antigos estão aposentados e uma nova geração de heróis, alguns descendentes dos icônicos personagens já supracitados, transformaram o planeta em uma festa de rave insana sem fim. A motivação para a desistência generalizada da atividade heroica entre os grandes nomes da Liga da Justiça foi a aposentadoria do maior super-herói de todos os tempos, o Super-Homem.
O Coringa invade o Planeta Diário e mata todos, inclusive Lois Lane. Superman vai ao encalço do psicopata mas Magog, um herói jovem e em ascensão, chega primeiro. Esse Magog faz parte dessa nova geração de heróis descontrolados e sem senso ético algum. No diálogo que se segue, o povo acaba escolhendo o discurso violento e fácil de Magog. Super-Homem fica horrorizado e se afasta cada vez mais de sua atividade, permanecendo em sua fazenda no Kansas.
Essa edição inicial contém uma profundidade típicas dos quadrinhos da DC Comics – quando a editora quer realmente fazer algo significativo.
Primeiramente, a questão das instituições. Mesmo o Super-Homem não consegue lidar com o terror popular e a sede de vingança contra o predomínio da justiça que um ato de tamanha magnitude de um criminoso tende a gerar. A escolha do povo por Magog simboliza a falência das instituições ou pelo menos o crédito popular nas mesmas. O povo já não confia mais nos alicerces que constroem uma sociedade. Mas a escolha pela violência vingativa, embora que contenha uma dose catártica imensa, o horror sendo pago e apagado com outro horror, na verdade gera mentes arruinadas democraticamente, e o preço é a própria sanção punitiva da liberdade. A violência institucionalizada e escolhida como forma de justiça gera uma liberdade baseada e desenvolvida não no respeito à vida, mas na idolatria da satisfação dos próprios desejos. E isso é o que a sociedade, pós saída de cena do Super-Homem, experimenta.
Os novos heróis são seres descontrolados e incapazes de estabelecer qualquer vínculo empático com os outros homens. Eles agem pelo prazer. Pelo prazer da batalha. Pelo prazer da violência do mais forte sob o mais fraco, pelo prazer de ser humano transformado em ser natural, destituído de qualquer elemento cultural que não seja o ímpeto para a destruição.
Eles se embriagam na violência, como diria Nietzsche. As cenas no primeiro capítulo quando um ônibus é arremessado, cheio de gente, no meio da confusão entre os metahumanos, mas parece um briga de gangues rivais de futebol.
Segundo, o advento de Magog. A escolha do povo por Magog só foi possível porque a sociedade permitiu seu surgimento. O mal não nasce de fora do homem, nasce de dentro. A partir do homem o mal assume as mais variadas formas. Sempre vai ser mais fácil a violência do que o diálogo, disso não temos dúvida. É a escolha pelo Nazismo na Alemanha; pela bomba atômica entre os militares americanos; pelo ódio midiático que não respeita sequer a morte de entes queridos no atual momento brasileiro.
Magog é a personificação das coisas mais fáceis e agradáveis em nós humanos: a violência, o ódio, a demasia e a brutalidade. É como se no íntimo desconfiássemos de nós mesmos. Como se soubéssemos que amamos o mal, mas o guardamos e o disfarçamos. Porém em momentos oportunos abraçamos sem o menor pudor a espada que corta sem distinção. Abraçamos a voz que rosna e grita e xinga ao invés do clamor por justiça; acariciamos a visão de sangue e vísceras e aplaudimos o discurso insano de uma jornalista em apoio a ação popular em que um garoto assaltante negro e pobre é morto a tapas e a pauladas, preso e amarrado, em um poste de iluminação. Magog reina e domina nessas horas. São momentos cruciais para nossa humanidade cambaleante. E cambaleia mais ainda sob o peso de nossa ânsia pela leveza do descompromisso social. Magog é o caminho da violência e do ódio como meio de aplacar o mal. É como se preferíssemos a tortura como meio de justiça. A liberdade se torna apenas pretexto para atos cruéis.
Terceiro ponto. A dificuldade do diálogo não é uma questão apenas desses jovens heróis ou das escolhas infelizes dos homens. Super-Homem também padece desse mal. Talvez o isolamento que se auto impôs tenha agravado mais ainda a tristeza que amargurou sua alma desde o advento de Magog. Sua ação política contra os vilões consiste em trabalhos forçados em novos gulags. O gulag foi uma criação soviética para punir criminosos. Reino do Amanhã parece que nos adverte sob o mal da violência enquanto uma escolha racional.
PARTE 2: Apocalipse.
A experiência do totalitarismo deixa tanto seus executores quanto suas cobaias apáticas. A própria Liga da Justiça se torna uma vítima e quando o diálogo surge já é tarde demais, a trombeta tocou e raios e trovões ensurdecem ante a batalha descomunal de todos os super-heróis. Uma bomba atômica explode por fim no campo de batalha, aniquilando quase praticamente todos os super-seres. A luta central foi entre Super-Homem e Shazam! E por mais que aquele tente agora um diálogo, o detentor dos poderes da Pedra da Eternidade é implacável.
Olhando o campo de batalha sentimos até compaixão diante do fracasso do Super-Homem. Depois da bomba encaramos a estupides de ações autoritárias que levaram a uma desordem ainda maior.
O fim é uma verdadeira lamentação das almas. Seco. A bomba explode e tudo termina. As quatro páginas que mostram um diálogo entre a Trindade foi colocada depois, quando de sua primeira republicação em edição encadernada. O fim original é o campo devastado por uma explosão atômica.
Terra devastada. Seria melhor assim? O final da edição encadernada não coloca mais explicações no ocorrido. É desnecessário. O fim mesmo é o resultado da prepotência humana objetivado na bomba atômica final. Os gritos de ódio explodiram por tempo demais e quando cessam, a razão é o pó que se levanta entre defuntos.
E é consideravelmente sintomático que para conter a violência Super-Homem se torne um quase um déspota.
A figura dele com certeza é gigantesca. É o Everest dos super-heróis.
Porém o entusiasmo com figuras assim, na história humana, quase sempre se torna prejudicial. Embora a Bíblia seja citada inúmeras vezes, Kal-El não é tão Cristo aqui. Na verdade temos um salvador mais humano do que divino. Um super-homem que abandona os homens; depois tenta retomar o diálogo com a espécie que jurou defender ao mesmo tempo em que usa de ideias ditatoriais contra seus iguais. Ele voa e parece que perdeu o contato com a terra.
Ou nós perdemos. Perdemos a empatia com personagens muito perfeitos? E se perdemos, foi para a melhor? Seriam quem nossos heróis hoje? Precisamos deles hoje?
Reino do Amanhã parte da premissa da vigilância do mal. Mas não uma vigilância opressiva, mas uma vigilância pautada em princípios éticos. Pois é justamente o vigiar e punir, aquele que Foulcault critica, que leva ao totalitarismo como escape e que acaba por tornar-se uma armadilha. A vigilância não como ato policial. Mas como ato humano. Não é uma vigilância sobre o outro que culmina em um ato coercitivo, mas uma vigilância em nós mesmos. No que escolhemos, no que abraçamos.
O diálogo nesse contexto se eleva a uma categoria central dentro da conduta humana. Por mais que os personagens dessa obra ajam quase irracionalmente, sentimos um apelo pela razão, sobretudo em Super-Homem, mas que se embriaga por escolhas pouco meditadas.
EPÍLOGO.


Mark Waid foi primoroso nesse texto. Reino do Amanhã é tão magistral que desde o número os entusiastas e a crítica especializada clamaram juntos afirmando a supremacia da obra. É bom repetir de novo: é a maior hq da década de 90. E se torna ainda mais colossal se a comparamos com muita coisa daquela década. Mas as irmãs dessa obra não estão, infelizmente nos anos 90, ao menos a maioria das irmãs. Reino do Amanhã tem pareia mesmo é com as grandes obras da década de 80. Permanecerá como um clássico. E sempre que precisarmos descobrir ou redescobrir o significado de heroísmo, abriremos suas páginas para nos depararmos com personagens humanizados a um nível sem igual.
É também uma obra cinza, melancólica. Sua tristeza se inicia já com os delírios de Dodds no leito do hospital; vai acinzentando com a aparição do Espectro e alcança seu nível mais elevado com a amarga situação social daquela Terra. Que é analogia para a nossa vida no presente: as grandes obras sempre falam de nós como se nos vissem através de um espelho distante.
Waid não economizou nas referências ao Universo DC, enumerá-las aqui, seria impossível, por mais tentação que se apodere deste escriba. É coisa para um segundo texto sobre a obra. Além disso, ainda temos a questão religiosa. O texto de Waid pode muito bem ser lido como interpretação do Apocalipse. E, por coincidência ou não, o panorama imagético bíblico do Apocalipse se casa com perfeição com os personagens da Casa das Lendas!
Outro ponto grandioso são os diálogos. Desde a cena entre Dodds e o Pastor até a cena da Trindade na lanchonete, temos falas tão conscientemente dramáticas, que se fossem adaptadas para o cinema poderiam fazer parte de muitas cenas sem qualquer modificação.
E temos Alex Ross. Aclamado por unanimidade entre os fãs do gênero, Ross se encontra melhor aqui do em Marvels. Podem discordar quem quiser, mas cenas como a chegada do Espectro, a primeira aparição de Clark na fazenda, a Mulher-Maravilha, as cenas em Gotham ou o Lanterna Verde no espaço são espetaculares. A visão de Ross para o Flash é linda, talvez a melhor representação do personagem nos quadrinhos.
E não sentimos aqui o vazio inoperante que toma conta em algumas páginas de Marvels. Há uma força pictórica que não transforma as cenas em quadros parados, como na obra da editora do Homem-Aranha. Algumas vezes isso até acontece, mas na maioria das vezes temos uma fluidez imagética melhor conseguida aqui com Super-Homem e companhia.
Assim como Waid, Ross não poupou referências, e numerá-las aqui não é o proposito desse texto. Ele tem grande conhecimento dos personagens da DC, e isso faz a diferença em qualquer criador que se preze. Conhecer o terreno que pisa por experiência própria.
Eu tenho a sensação de que o traço e o estilo de Ross se adequam mais aos personagens da DC do que aos de qualquer outra editora ou mesmo qualquer outro gênero dos quadrinhos. Super-Homem, Batman, Mulher-Maravilha, Shazam! nasceram para serem pintados por Ross. Com Ross, aquela questão do “ícone” se mostra mais coerente com os personagens da Liga da Justiça do que com qualquer outro grupo de super-herói da DC ou de qualquer outra editora. E digo isso não para diminuir outros personagens, pois também têm sua relevância histórica imperturbável, não precisam ficar verdes de raiva nem subindo pelas paredes. Não é vingança, é justiça mesmo.


Uma nota para Reino do Amanhã. O 10 é questão natural mesmo. É uma obra que alcança os pontos mais elevados da criação na arte sequencial.
OS ÚLTIMOS DIAS DO SUPERMAN, POR ALAN MOORE. ou: como se escreve quatro histórias que valem por uma fase inteira.
Alan Moore. Falamos esse nome como se recitássemos um mantra sagrado. Nós, leitores de quadrinhos, e mais especialmente dos quadrinhos da DC Comics, devemos muito a esse artista.
E é uma dívida contraída aos poucos. Bem aos poucos mesmo. Com exceção de Monstro do Pântano, Moore jamais permaneceu mais que um ano em nenhum outro título da editora. Mas quando pousou seu gênio em qualquer personagem que fosse, criou momentos de fazer inveja a muitas fases de hoje. Vejamos.
Escreveu apenas duas pequenas histórias para o Lanterna Verde. E o excelente Geoff Jonhs foi atrás disso para criar a maior fase de Hal Jordan e companhia, nos quase 10 anos em que escreveu muitas histórias que bebiam na fonte de Moore.
Com o Batman da mesma maneira, escreveu tão poucas histórias quanto, mas uma delas viria a ser tornar um dos maiores e mais festejados clássicos de Batman de qualquer tempo: A Piada Mortal.
Para o Superman foram apenas quatro histórias. Estas histórias, publicadas pela primeira vez aqui no Brasil pela Editora Abril em Super-Homem #33 (de março de 1987) e em Super Powers #21 (de maio de 1991) são: O que aconteceu ao Homem de Aço?, em duas partes; A linha da selva e Para o homem que tem tudo. 

Na revista Super-Homem foi publicado A linha da selva e em Super Powers as outras três. E já tiveram, merecidamente, desde então várias reedições em outros formatos e por outras editoras. No que diz respeito à qualidade da apresentação da edição, a da Panini ganha de longe.


A linha da selva conta com a participação do Monstro do Pântano, que Moore escrevia na época e saiu em DC Presents #85 de 1985. No conto, Clark Kent é acometido de graves distúrbios físicos ao ser exposto à radiação de um fungo kryptoniano. Apenas a intervenção de Alec Holland, o Monstro do Pântano, o faz recuperar a saúde.
Para o homem que em tudo foi apresentada em Superman Annual #11 de 1985. Aqui, através de uma toxina vegetal, o vilão Mongul consegue fazer o Homem de Aço cair em um estado catatônico mortal, aonde a sua morte vem através de seu maior sonho.
O que aconteceu ao Homem de Aço? foi publicada originalmente em 1986, nas revistas Superman 423 e Action Comics 583 e narra os últimos dias de Clark Kent como Superman.
Essas histórias tem em comum um elemento que parece que os autores de hoje se esqueceram, que é tornar o Super-Homem mais humano, não digo homem, mas humano, enquanto um adjetivo, uma qualidade ou um defeito.
Superman é um personagem difícil. A dificuldade reside do fato dele encarnar determinadas ações que hoje são consideradas ultrapassadas; na verdade, a péssima consciência de nossa época tornou sua história não muito apreciável para a mentalidade atual. É um problema que vai desde o fato da força quase sem fim de Kal-El até tocar aos seus princípios rigidamente morais. A nossa época prefere a violência como primeiro “diálogo”, mas Clark Kent é um jornalista e sua área são as ideias e o debate. Porém há algo de atual nele. Esse algo é a cultura humana que ele absorveu através de Smalville. Essa cultura o preencheu de elementos que a sociedade kryptoniana esqueceu. As mais extraordinárias histórias do Superman são exatamente essas em que o autor assume esse lado do personagem.
Aquele lado super, que puxava galáxias inteiras atrás de si, sorrindo e feliz, e que com certeza quem é fã do personagem sabe amar, nosso tempo parece que, infelizmente, ver com maus olhos. Deve-se humanizar os personagens para que estes tenham entrada na vida das pessoas. Na época da criação de Superman era exatamente o contrário que agradava, mostrar Superman com cada vez mais poderes fazia a popularidade desse ícone subir geometricamente.
Felizmente ele tem em seu nome tanto o super quanto o homem. Então se pode trabalhar as duas coisas. E Moore caminha com desenvoltura em ambas.
É típico dele colocar os heróis em situações limites, e Watchmen é cume nesse aspecto. Mas Batman se ver ao ponto de matar o Coringa em A piada mortal, enquanto Gordon quase enlouqueceu vendo fotos de Bárbara sendo estuprada pelo Coringa.
Na Linha da Selva Moore testa os limites do homem sem limites fazendo-o necessitar de nada mais nada menos do que um simples repouso no colo da mãe-natureza. Superman aqui é o homem urbano, tecnicista e especializado que sofre. O Monstro do Pântano é o conforto da natureza mais uma vez colocada à disposição da vida. É uma história linda, cheia daquela inspiração confiante de Moore.
Os desejos mais triviais do mundo são exatamente o que o homem que tem tudo não tem ou não pode realizar, a não ser quando anestesiado até a morte por uma planta alienígena. É essa a história de Para o homem que tem tudo. No dia de seu aniversário nosso valoroso super-herói recebe quatro poderosas visitas: seu melhor amigo Batman, seu filho adotivo Robin, a Princesa das Amazonas, a Mulher-Maravilha, e um vilão espacial, Mongul. O Robin em questão é o segundo, Jason Todd. Cada um deles vem trazendo seu presente, como os reis magos ofertando suas oferendas simbólicas para Jesus.
Mas aqui o aniversariante já é um homem adulto e, antes que seus amigos tivessem chegado, Mongul conseguiu colocá-lo numa espécie de transe alucinógeno provocado pelo contato com uma planta espacial, a clemência negra (estaria Moore lembrando seus passeios pela Cannabis Sativa?). De qualquer forma descobrimos a alma de Clark. Sua vontade mais íntima, mais pessoal e mais perfeita é ter uma família. No entanto, se ele não sair do transe a tempo, poderá permanecer assim nesse estado para sempre.
O que aconteceu ao Homem de Aço é uma daquelas histórias que, se não existissem, teriam que ser sonhadas por alguém, pois é a história mais emblemática de Moore dentro do mundo do Superman. Em duas partes soberbas, revisitamos vários aspectos da mitologia do personagem: a Fortaleza da Solidão, Krypto, Supergirl, a Legião dos Super-Heróis, os vilões, Metropolis, o Planeta Diário e seus funcionários, Smalville (através de Lana Lang). É uma história de profunda tristeza com um piscar de olhos famoso no final.
Um jornalista decide entrevistar Lois sobre os últimos dias do Homem do Amanhã. Ela está casada e tem um filho. O Superman desapareceu do mundo e nunca mais deu notícias. Lois conta os fatos trágicos que encerraram a carreira mais super-heroica de todo os tempos. Um a um, os personagens que marcaram a vida de Clark vão desaparecendo. Num turbilhão que nem mesmo ele consegue escapar, sua identidade é revelada e várias pessoas próximas são assassinadas. Por fim o próprio Superman acaba por matar o causador de todo esse drama, mas se retira, entrando em uma sala com kryptonita e fechando a porta pós si.
É uma história comovente. Vê-lo assim completamente cercado. No último quadrinho da primeira parte, ele senta e chora acompanhado de seu cão fiel, Krypto, que também se entristece. É lindo e tocante demais.


Tudo isso para mostrar a última história pré-Crise de Superman. É um adeus não só para aquele Superman, mas para uma época que começou em 1938 com Action Comics #1. E é o testemunho de uma mente, a de Moore, que sempre amou esse personagem.
E é tristemente notável que ninguém até hoje tenha ido atrás dessas histórias para compor uma fase decente para o primeiro e o maior dos super-heróis. Mas é exatamente isso, como exposto acima, a criação maior de Siegel e Shuster é de extrema dificuldade para os dias de hoje, e isso depõe contra os dias de hoje e não contra Superman.
Para se fazer justiça a esse personagem apenas grandes escritores, pois apenas eles podem extrair, da poderosa e grande mitologia do kryptoniano, histórias que sejam da mesma estelar categoria de Clark Kent.
E isso nós temos aqui nessas histórias do grande escritor britânico. Poesia. Drama. Comédia. Temos a alma do Superman revelada de uma maneira singular; presenciamos seu desespero em seus últimos momentos; e o melhor é o fim, quando nos tornamos cúmplices de uma felicidade que Clark Kent merece ao lado de seu maior amor assim, em um piscar de olhos. É essa a sensação que Moore nos passa de forma refinada, simples e direta. Familiaridade. A gente sabe afinal o que houve com o Homem de Aço. Parece que somos amigos do casal. Momentos assim só se conseguem com grandes escritores em sua inspiração mais apurada.


quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

EU ERA UM HOMEM COM PODERES ANIMAIS: A estranha jornada do Homem Animal de Grant Morrison.
Há personagens que nascem grandes e há personagens com potência de serem grandes. Não há personagem ruins, há péssimos escritores.
Em Setembro de 1965, na revista Strange Advetures #180, Dave Wood e Carmine Infantino apresentaram ao mundo um desses personagens despretensiosos, Buddy Baker, o Homem Animal. ele ganhou seus poderes quando entrou em contato com a radiação extra-terrestre de um OVNI. A partir daí, ganha a habilidade de absorver qualquer capacidade de qualquer animal que estiver próximo. Esta é a origem desse personagem que hoje é o personagem central de uma das mais vigorosas fases dos Novos 52, escrita por Jeff Lemire.
Mas nosso foco aqui é bem anterior, e diz respeito à fase do escocês Grant Morrison. Nesse artigo me concentro em duas características centrais de Morrison em Animal Man, uma formal e outra de conteúdo: a metalinguagem e a melancolia, respectivamente.


Quando Morrison passou a escrever Animal Man, a partir da primeira edição, permanecendo no título até a edição 26, ele causou um verdadeiro reboliço no meio editorial.
Tudo bem, quadrinhos de super-heróis adultos já não eram tanta novidade assim, convenhamos, Alan Moore já esbanjava sua poesia em Monstro do Pântano, sua força política já havia sido sentida como um terremoto avassalador em V e acima de tudo em Watchmen, Frank Miller carregava de violência urbana o seu Demolidor, a sua Elektra e o seu Batman, e Neil Gaiman iniciava o sono dos justos com seu feérico Sandman. Sem falar nos romances gráficos e auto-biográficos de Will Eisner.
Mas o título de Morrison mostrava amplas novidades. Tanto de conteúdo quanto de forma.
No que diz respeito à forma, Morrison rasga a linha que separa o personagem do leitor, em outras palavras, ele faz com que o Homem Animal entre no nosso e converse com Morrison.
E o conteúdo das histórias de Morrioson também são diferentes dos mostrados por Moore ou Miller. Nesse aspecto, esse Homem Animal pode ser mais aparentado com Gaiman e Eisner. Há uma melancolia que perpassa toda a saga de Buddy Baker sob a égide de Morrison.
Essa melancolia ganha contornos muitas vezes sutis e até mesmo cômicos, diferentes da melancolia realista de Moore.
Aliás, por falar em realismo, Morrison parece caminhar em outra estrada daquela de Moore. Este coloca os super-heróis tal como seria se vivessem no nosso mundo; Morrison, ao contrário, diz claramente, há o meu mundo (do escritor) e o seu mundo (dos personagens).
Isso torna as histórias elegantemente melancólicas. Lembro "A morte do Máscara Rubra", (EUA, DC, Animal Man #7, 1988; BR, Ed. Abril, DC 2000 #13, 1991). Ele deseja voar como um super-herói e salta do alto de um edifício. Por momentos permanece no ar, como que pairando. A gente sente que há algo errado. A força da narrativa de Morrison nos empurra para que não aceitemos aquilo que parece ser a vontade de nossa alma, que esse personagem realize seu sonho de voar. Na página seguinte, uma mancha de tinta vermelha anuncia o ocorrido.



A melancolia da solidão da família também é registrado. Na história "Aves de rapina", (EUA, DC, Animal Man #6, 1988; BR, Ed. Abril, DC 2000 #11, 1990), que faz parte da mega saga Invasão!, Morrison nos fala, enquanto Buddy tenta desarmar uma bomba thanagariana, de um soldado infeliz do exército de Thanagar. É uma narrativa dupla: de um lado, as tentativas de Buddy para desarmar a bomba, do outro, a história do triste soldado alienígena.
Em Thanagar há um rito de passagem onde os homens devem mostrar, através de uma escultura, suas aptidões e assim determinar o seu futuro. Este soldado em questão, quando foi fazer esse rito, esculpiu uma obra de arte bastante pessoal, o que desagradou seu pai. Pois este esperava que o filho esculpisse uma cena militar, de guerra, de bravura mesmo. Mas o rapaz prefere falar mais dos problemas da alma do que dos problemas patrióticos. A cena que mostra o rapaz levando uma bronca do pai, que se sente envergonhado, pois o filho está dizendo que quer ser um artista e não um militar, é comovedora. Simplesmente o rapaz thanagariano coloca mão no coração, surpreso e amedrontado, pelos gritos de ódio do pai. Há uma certa relação com a história de muitas "ovelhas negras" da família aqui e do próprio Morrison - as grandes histórias sempre são auto-biográficas. Não sei se Morrison sofreu ou não alguma pressão familiar nesse sentido, mas que percebemos a opinião de Morrison sobre o assunto é inegável. Mesmo assim, o resultado atua contra o jovem artista. O pai pede uma segunda avaliação para o jovem, e nessa segunda vez ele agrada ao pai com uma escultura militarista.
Outro ponto interessante é o distanciamento de Morrison em relação ao que estava ocorrendo na DC; na época dessa história a editora publicava Invasão! um mega-evento que reunia todo o UDC e tratava da união de várias raças alienígenas que invadiam a Terra. Morrison não deixa de circunscrever seu título dentro dessa saga, mas permite um distanciamento. Nesse crossover o tema da invasão é deixado de lado em favor da história do militar thanagariano.
Outra melancolia que permeia essas histórias, e aí temos o ponto mais emocionante, mais verdadeiro, mais belo e poético e o mais triste também, é a melancolia da existência animal.
Ao longo das histórias, somos apresentados à macacos vítimas de experimentos científicos, às matanças violentas e cruéis de golfinhos, à envenenamentos de gatos e até mesmo à uma conversa onde um coiote resolve abandonar de vez o mundo desumano em que vive.
A questão animal é seriamente abordada por Morrison. Não há sentimentalismo barato aqui. Há muita poesia e mágoa sinceras em relação aos caminhos tortuosos aos quais a racionalidade levou e leva a condição humana.
Em "O evangelho do Coiote" (EUA, DC, Animal Man #5, 1988; BR, Ed. Abril, DC 2000 #7, 1990) Morrison nos convida a entrarmos no mundo de Looney Tunes. O Coiote vive em mundo onde "animal se volta contra animal", nas palavras do próprio escritor. O Coiote fica chateado com toda essa briga que nunca tem fim e resolve falar diretamente com seu Deus. Vai para o deserto e lá ascende aos céus e conhece o seu Criador. O Coiote fala da dor que é viver em um mundo onde os animais se agridem, mas o seu Criador fica zangado com os protestos e resolve punir o Coiote. Ele envia o animal para o nosso mundo e diz para ele que o seu mundo ficará em paz para sempre, desde que ele sofra por seu mundo eternamente. Ele vai viver em nossa realidade, vai sofrer e ser morto, mas ressuscitará e novamente sofrerá e morrerá eternamente, fazendo isso os animais do mundo do Coiote ficarão em paz. É uma história com uma metalinguagem refinada, o Criador que o Coiote conhece é o próprio Morrison. E essa história provocou protestos de agremiações religiosas nos EUA.



São nesses momentos que a melancolia de Morrison, sempre presente em suas melhores páginas, alcança os nossos olhos e despenca em torrentes de lágrimas.
Como vimos, a metalinguagem é outra característica de Morrison e encontra uma construção habilidosa nas páginas do Homem Animal, e culmina na apoteose de Deus Ex-Machina (EUA, DC, Animal Man #26, 1991; BR, Ed. Abril, DC 2000 #36, 1992) onde Buddy conhece Grant Morrison, que lhe revela que seu mundo é uma fantasia criada por uma empresa. Na verdade podemos afirmar que os 26 números que Morrison escreveu para Animal Man são em forma de um gigantesco diálogo metalinguístico entre o o mundo dos quadrinhos, personificado por Buddy e o nosso mundo, personificado por Morrison, com incursões pelo mundo dos desenhos animados.
Essa fase é uma das melhores em qualquer época das histórias em quadrinhos. Não apenas do Homem Animal ou da DC, mas da arte sequencial como um todo; Morrison é um escritor de alta estirpe, poeta metalinguístico sem concorrentes e defensor de causas políticas que o colocam como ícone de boa parte dos leitores de hqs. Suas histórias a princípio sempre são deslocadas e parecem caminhar sempre para a dissolução em um abismo, como ele mesmo diz para Buddy no número 26, o último que escreveu, da série. Mas à medida que as páginas vão se sucedendo, percebemos que estamos diante de um quebra-cabeças maravilhoso e que apenas o tempo pode fazer com que cheguemos a uma compreensão do todo. Ele sempre vai por partes sem se preocupar com o momento em si, e sim, alongando esse tempo, construindo uma trama que se solidifica à medida que avança.
Animal Man de Grant Morrison faz parte daquelas leituras obrigatórias que cada forma de arte possui e que são capazes de mudar a maneira como pensamos e vemos o real.
E o mais agradável nisso tudo é a maneira quase coloquial com a qual Morrison nos apresenta temas complexos e os desenvolve. As tramas se iniciam com uma simplicidade bem construída e página após página, vão tomando contornos cada vez mais insuspeitos, e Morrison nos mergulha num vórtice de ideias e afetos, atiçando nossos neurônios e nosso coração.
O sangue é vermelho em qualquer espécie.
ASILO ARKHAM: UMA SÉRIA CASA NUM SÉRIO MUNDO -
Batman, Coringa e o Asilo/Alice, o Coelho e o País das Maravilhas.
Dificilmente hoje podemos duvidar que contos de fadas foram escritos por mentes doentias.
Cada página de qualquer conto de fadas encerra em si um mundo perturbado completo de críticas sociais, políticas e mesmo sexuais.
Mas foi preciso a modernidade para que essa análise inusual do mundo do "Era uma vez" de Branca de Neve e companhia resplandecesse com uma luz mais negra, como um sol em eclipse total.



Quando Grant Morrison pousou suas asas sobre Gotham, sua primeira preocupação não foi o seu filho mais rico (ou mais heroico), foi uma instituição para lunáticos impiedosos sedentos de sangue.
Historicamente o nome Arkham está ligado ao escritor H. P Lovecraft, cujos contos de terror e loucura são ambientados nessa cidade fictícia. Nos quadrinhos, a área geográfica passou de uma cidade para um asilo, mas preservou, além do nome em homenagem à criação lovecraftiana, a disposição de ser moradia de insanos e perturbados.
Morrison, como habitualmente e habilmente faz, narra dois contos ao mesmo tempo. O primeiro, é sobre uma rebelião no Asilo. Os detentos fizeram vários reféns e exigem a presença de Batman. O outro, em flashbacks, é sobre Amadeus Arkham.
Inaugurado por Amadeus Arkham, o sanatório logo ganhou fama de assombrado. Pessoas afirmavam que uma criatura assustadora caminhava pelos corredores, ao passo que a mãe de Amadeus assegurava que todas as noites um enorme morcego voava em seu quarto. A loucura logo tomou posse da família Arkham. Desgostoso com o caminho escuro que a mente de sua mãe estava tomando, Arkham decide conversar com místicos. Conhece Alaister Crowley, que desvenda-lhe os mistérios do tarot. Conversam sobre magia e loucura. No Asilo, que também serve como residência para a família Arkham, a loucura, que é herança dessa família, cobra mais uma vítima. Amadeus ver a mãe morta e imagina que ela agora está livre de alguma possessão sobrenatural, será que foi um matricídio? Amadeus também teria o mesmo destino compartilhado por sua família: adormecer numa ilha isolada cercada pela paz da demência.
Quando a história se inicia, lemos uma citação de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carrol.
ALICE: Mas eu não quero me encontrar com gente louca.
COELHO: Mas você não pode evitar isso. Todos somos loucos aqui... Eu sou louco... Você é louca...
ALICE: Como que sou louca?
COELHO: Deve ser. Ou não teria vindo aqui.
O destino enquanto simbolismo começa a tecer suas teias. Ninguém vai a qualquer lugar que seja se não for por uma atração irresistível em si mesmo, uma identificação, com o ambiente. E a nossa vontade? Nosso livre-arbítrio? Morrison parece nos dizer que existem coisas que transcendem nossa vontade. No mais íntimo de nós, nossas escolhas já foram dadas, o tempo e as circunstâncias se encarregam de mostrá-las.
Batman não vai ao sanatório por acaso ou por que os reféns assim serão soltos. Ele vai por uma necessidade de se irmanar com seus iguais. Hoje ninguém duvida que o super-herói de Gotham sofra de problemas psicológicos graves. E estar no Asilo é como uma festa de iguais. Uma comemoração.
Quando Batman chega é saudado pelo Coringa. Percebe que o lugar está rodeado por sal. No espiritismo, esse elemento afasta entidades indesejáveis. Batman está no lugar certo. Ele entra com tranquilidade.
Mas o sal também tem outro simbolismo e dessa vez mais palpável.
O Coringa afirma: "Não sou bom o bastante para ser comido?" Fazendo referência ao sal no lugar. É a primeira insinuação homo afetiva na obra. As outras surgem em seguida. O Coringa segura com força as nádegas de Batman e pergunta: "Toquei em algum nervo exposto?" E depois; "Cadê o Robin? Já começou a se depilar?"
O Coringa é um personagem que podemos categorizá-lo como um trickster. Ou seja, um malandro, um vagabundo, porém dotado de incrível sabedoria. Nas mitologias esse personagem aparece sob vários nomes: é Loki para os escandinavos, Mercúrio na mitologia romana, entre os Iorubás ele é Exu.
Morrison coloca no Coringa essa característica vivaz e chocantemente alegre que esses personagens possuem. Quase sempre em suas mitologias, são vistos como seres que merecem pouca confiança, pois são burlescos e mentirosos e gostam de brincar das maneiras mais inusitadas, de preferência falando com conteúdo fortemente sexual e fazendo gestos obscenos. Uma outra característica do trickster é que ele transita por muitos mundos e pode assumir várias formas e personalidades, uma hora está amigo ou outra hora é um feroz inimigo. Em momento é um adulto em outro é uma criança chorona que pede doces. Hoje é homem amanhã é mulher. Loki gosta de se vestir como mulher. Exu tem sua contraparte feminina a Pomba-Gira e quanto ao Coringa, sua representação em Asilo Akham, em muitos gestos e expressões, varia de um sorriso perverso para atitudes bastante afeminadas.
É interessante essa visão do Coringa como um trickster. Uma das psicólogas do Asilo, Doutora Ruth Adams, fala para Batman que o Coringa na verdade é um ser consciente que explode em mil personalidades, de forma que é impossível definir o que seja o Coringa. E que essa super sanidade do Palhaço do Crime na verdade é a melhor maneira de viver no caos urbano. Sem dúvida é um dos maiores personagens das hqs. Há momentos em que o Coringa se comporta de forma infantil para no quadrinho seguinte assumir uma expressão mais adulta.
Nesse conto o Coringa pode ser identificado também como o Coelho do conto de Carrol. Assim como este guia Alice pelo País das Maravilhas, o Palhaço do Crime guia Batman pelos corredores do Asilo.
Batman é Alice. Sua consciência do mundo em que se encontra é tão marcante quanto àquela da personagem de Carrol. Ele sabe que está em mundo de loucos, mas não pode escapar disso, pois a loucura é herança para algumas pessoas. Para Alice. Para Batman. Mas a loucura de Alice é uma loucura infantil ou infantilizada, embora terrível. Alice se move em um mundo de doces, chás, crianças choronas, mas também de cabeças cortadas, crianças que são espancadas e uma rainha depravada. Batman se locomove através de paredes e corredores escuros, personagens doentes mas também, através do conhecimento psicanalítico dos doutores do Arkham ou do sorriso, ora afeminado ora ameaçador, do Coringa.




A jornada pelo Asilo Arkham é feita em níveis assim como ocorre no livro de Carrol. Cada nível corresponde a uma espécie de "lugar" na mente de Alice/Batman. A imagem da cabeça é uma figura constante nessa história. "Parece que estamos dentro de uma cabeça que nos sonha", diz o Chapeleiro Louco em certo momento.
De baixo para cima, para a cabeça, para o cérebro que organizou tudo aquilo. A última parada de Batman é uma conversa com Cavendish, o diretor do sanatório. Inspirado pelos diários de Amadeus Arkham, Cavendish resolveu chamar o último habitante do Asilo, o Homem-Morcego. A essa altura Batman já está convencido que é louco e resolve colocar sua vida nas mãos de Duas-Caras. Se a moeda cair com a parte lisa para cima, ele sai; se cair com a parte riscada, ele fica.
Pelo destino, Batman deve permanecer no Asilo. Mas Duas-Caras trapaceia e, não mostrado a moeda, afirma que Batman deve sair. A despedida do Coringa é entrecortada por Duas-Caras, que aprecia a moeda que caiu com a face riscada para cima.
Nesse momento, Alice retorna através de uma citação do livro.
Duas-Caras, olhando para a moeda (o verdadeiro destino de Batman) e para a porta que se abre para que o Morcego saia (o destino falso), afirma, como Alice no fim do País das Maravilhas:
"O que importa? Vocês não passam de um baralho de cartas!"
No fim percebemos que Amadeus Arkham é mais Batman do que o próprio Batman. Até certas situações são espelhadas.
Há um momento em que Arkham fala: "Preocupados com meu estado de saúde, alguns amigos me levam à ópera. Parsifal, de Wagner. Eles não compreendem? Não veem que me despedaço em mil fragmentos?"
Nos labirintos de loucura de Batman, este corre em direção ao Crocodilo. Batman então imagina a cena na ópera Parsifal, citada por Arkham anteriormente, onde o personagem título entra na Torre Negra para lutar contra o dragão que há lá dentro, no caso, é um feiticeiro. A cena acolhe com perfeição essa referência, uma vez que Batman está no Asilo, na Torre Negra, encarando uma criatura horrível.
País das Maravilhas e Asilo Arkham se abraçam nessa obra de Morrison, com toques wagnerianos.
Além da cabeça, outra imagem constante na obra é o do peixe. Podemos dizer sim que se trata do maior leitmotif dessa obra. Logo no inicio vemos a figura do signo de peixes, Pisces, dois peixes nadando em direções opostas. Esse símbolo significa reencarnação ou ressurreição para os cristãos, o próprio símbolo do cristianismo é um peixe, e nas religiões orientais, significa a compaixão exercida por Buda diante da vida.
Quando o símbolo é quebrado, o resultado é a degradação do ser. A loucura. A primeira vítima é a mãe de Amadeus. Depois o próprio Amadeus. Os detentos do Arkham. Batman. Todos personagens com histórias de vida desgraçadas e surradas pela existência até o nível da completa insanidade. Porque Pisces também é o símbolo das coisas escorregadias, que não se controlam, que tentamos pegar com nossas mãos porém nos escapam. Nada no misticismo é gratuito. A força que une também é a força que desagrega.
O Coringa enxerga o Arkham como um mundo. E novamente aqui temos Pisces, pois ele também é símbolo de multidões.
Quando a mãe de Amadeus é assassinada, sua imagem pintada executa o símbolo do escaravelho egípcio, os dois pulsos unidos com as mãos abertas, que no antigo Egito era um símbolo que significava a passagem não para a morte, mas para uma outra vida e que nos traz novamente a figura da ressurreição/reencarnação simbolizado pelo signo de peixes.
Amadeus proclama que sua mãe renasceu em outro mundo, "um mundo de presságios e magia e de símbolos misteriosos..." Também é importante notarmos que as mãos e os pulsos da mãe de Amadeus estão envoltos de luz branca.
Asilo Arkham é uma obra sombria, sem dúvida. Mas não é pessimista. É sobre loucura de fato, mais por causa do próprio mundo exterior do que por qualquer outra coisa. É um microcosmos onde se espelham as dimensões de um cosmos maior. Grant Morrison trabalha aqui de maneira a mais introspectiva possível. Não há muita violência externa nessa séria casa. Há uma violência e um horror psicológicos, que nos faz ler o texto e apreciar as pinturas como se estivéssemos de alguma maneira e à medida que o tempo passa entorpecidos.
A melancolia de Morrison aqui caminha com uma desafiadora ironia. No fim, é o Coringa quem manda lembranças para os loucos que estão... fora do Asilo.
JOHN BYRNE, FRANK MILLER E GEORGE PEREZ: a trindade que redefiniu a trindade.
Em 1985 a DC Comics completava 50 anos de existência, e para comemorar essa data, nada melhor do que ser bem americano e destruir tudo num evento apocalíptico hollywoodiano. Assim nasceu a maior saga de super-heróis de todos os tempos, e isso para se dizer o mínimo sobre Crise nas Infinitas Terras, o megaevento que comemorou o aniversário da DC destruindo gloriosamente o Universo DC.
Em 1961 na revista Flash #123 foi publicada a história "Flash de dois mundos", que mostrava a coexistência de universos paralelos numa mesma continuidade. Havia várias Terras e essas Terras possuíam versões dos super-heróis da Terra base. 1961 também seria um ano importante para a Marvel Comics, pois foi nessa ano que seu universo compartilhado começou com Fantastic Four #1. Naquele ano, Flash de dois mundo foi eleita a melhor historia em quadrinhos do ano.
Havia então múltiplas Terras e o conceito foi tão amado pelos leitores que imediatamente a DC tratou de mostrar outras Terras.
Mas as histórias se centravam sobretudo nas Terras 1, 2 e 3.
Porém havia infinitas Terras e o que começou como uma ideia genial se tornou um monstro editorial de infintas cabeças. Os editores brincavam com a continuidade e os leitores logo foram percebendo que, mesmo gostando do conceito, ele estava sendo exagerado a um nível sem precedentes, a tal ponto que não se sabia mais se uma história estava valendo ou se era alternativa.
Crise nas Infinitas Terras veio para organizar tudo isso. Ao final da mega saga existiria apenas uma única Terra, com único Flash, um único Superman, um único Batman, uma única Mulher-Maravilha, e assim por diante. As origens sofreram algumas alterações e não foram apenas os personagens do segundo escalão.
Muito longe disso. A DC estava pronta para assumir os riscos e modificar muita coisa nos seus três principais super-heróis.
Foi assim que John Byrne, Frank Miller e George Perez entraram no jogo.
Byrne vinha de uma fase dourada nos X-Men da Marvel. Miller havia sacudido o meio editorial com Cavaleiro das Trevas e Perez era nada mais nada menos do que o desenhista de Crise.
A DC apostava grande nessas reformulações.


John Byrne ficou com o Superman. Iniciando uma fase que duraria dois anos, de 1986 até 1988, Byrne virou completamente o universo do Homem de Aço.
Sua fase começa em Junho de 1986. Nesse momento ele escreve e desenha Man of Steel, uma minissérie em seis edições quinzenais. Todas as seis edições venderam mais de 1 milhão de cópias. Cada uma delas é dedicada à importantes pontos da mitologia do personagem:
#1:Krypton,Smalville;
#2:Metropolis,LoisLane;
#3:Batman;
#4:LexLuthor;
#5:Bizarro;
#6: Smalville, Lana Lang.
Após terminar a minissérie, em setembro de 1986 é lançada Superman #1. Foi pedido do próprio Byrne que a revista zerasse a numeração.
O sucesso dele com o Superman foi tão grandioso quanto polêmico. Primeiramente ele transformou Krypton num planeta desolado e estéril onde as pessoas não costumavam manter contatos sexuais. Eliminou metade dos poderes do Homem de Aço, transformou Lex Luthor de bandido psicopata ao maior bem-feitor de Metropolis, magnata e bem visto por todos. Além disso, eliminou muitos pontos da mitologia do Superman: Superboy, Supergirl, os super-pets, todos foram retirados da mitologia. Embora Byrne explicasse a existência de um Superboy em uma aventura épica com Legião dos Super-Heróis e, em seus últimos números, trouxesse de volta a Supergirl (mas não a prima desse Superman, mas uma personagem de outra dimensão, o que, por si só, já começava a romper as diretrizes estabelecidas em Crise nas Infinitas Terras de uma só Terra existente).
Também colocou o Superman em situações vexatórias. Em Action Comics #593, Byrne sugere que Superman foi ator pornô em um filme em que contracenava com a Grande Barda, nova deusa de Nova Gênese esposa de Scott Free, o Senhor Milagre. Embora ele não afirme com certeza, mas fica no ar a questão, e cada um pode tirar suas próprias conclusões. Porém Byrne era mestre em arrumar brigas com as editoras por assuntos assim.
Na sua fase com a Mulher-Hulk, da Marvel, ele colocou a super-heroína em uma cena em que ela depilava as pernas, foi o estopim para abandonar o título devido á fúria do editor que considerou inadequada a situação para uma super-heroína.
A fase de Byrne durou apenas dois anos, mas foram mais de 60 histórias escritas ou escritas e desenhadas por ele: escreveu e desenhou Man of Steel, em seis edições; escreveu e desenhou Superman do número 1 ao 22; escreveu e desenhou Action Comics do número 584 ao 600; escreveu mais três minisséries, cada uma delas em quatro edições: O mundo de Krypton, O mundo de Smalville (aqui no Brasil, quando do lançamento pela Editora Abril, recebeu o nome de O mundo de Pequenópolis) e O mundo de Metropolis; além das edições anuais de Superman e Action Comics nesse período; e co-escreveu algumas histórias com Marv Wolfman para um terceiro título do Superman: Adventures of Superman (mas nessa caso Wolfman era o escritor principal).
As últimas histórias dessa fase são marcadas pela admiração e pela revolta dos fãs do personagem: em Action Comic #600, Superman finalmente beija a Mulher-Maravilha, mas no final decidem que precisam mesmo é de companheiros humanos (Lois e Trevor); e em Superman #22 ocorre o momento mais duramente criticado, nessa saga, a Saga da Supergirl, ele mata o General Zod e mais outros dois kryptonianos de um universo paralelo.
Mesmo com tanta controvérsia (filme pornô, assassinato e etc.), a fase de Byrne, no geral, é vista como a melhor fase que o personagem teve desde pós-Crise. É difícil hoje encontrar um autor que se dedique tanto e em tão pouco tempo a um único personagem, houve meses em que Byrne escrevia ou escrevia e desenhava até três edições por mês. Mas Superman é assim, para criar com ele tem estar mesmo disposto a sacrifícios.



Frank Miller ficou responsável pelo Batman. Primeiro que, diferente de Byrne, sua estada com o personagem durou apenas cinco meses, e inclui Ano Um e uma pequena história de Natal em Gotham.
Ano Um foi publicada em quatro edições de Batman: #404 ao #407, de fevereiro-maio de 1987.
A saga reconta, seguindo Bill Finger e Bob Kane, os primeiros anos do Cavaleiro das Trevas. A escrita de Miller é menos perturbada do que em O Cavaleiro das Trevas, porém é mais agradável em muitos aspectos. Um deles é o traço elegante de David Mazzuchelli. A dupla já havia trabalhado junta na excelente fase do Demolidor da Marvel. Aqui essa parceria retoma alguns ambientes e situações daquelas que são mostradas em Demolidor, é que isso é característica da visão de mundo de Miller: drogas, decadência moral, corrupção policial, injustiças sociais, políticos corruptos e charlatões.
É emblemática a cena em que Batman chega de surpresa em uma festa da elite de Gotham e afirma:
"Vocês comeram bem! Comeram a vida de Gotham, sua alma! O banquete acabou."
Essa temática social está faltando hoje nos autores. Com exceção de Morrison, a maioria só dedica aos pontos mais escabrosos e insanos do Cruzado Encapuzado.
A Mulher-Gato de Miller e Mazzuchelli é um pouco diferente também, ela é negra. Outro ponto importante é o seu relacionamento tenso com a polícia de Gotham, temos impressão de que apenas Gordon é amigo dele na repartição.
A nuance psicológica permeia Bruce Wayne. Ele conversa sozinho e ele fala com seu pai morto.
"Sim, pai! Eu me tornarei um morcego."
Miller mostra para nós o mais humano e, nesse aspecto, o mais perfeito personagem de quadrinhos. Batman é um personagem até certo ponto fácil de ser trabalhado. Mas aí é que reside o perigo. Pois é sedutor demais simplesmente pegar o personagem e cercá-lo de situações psicóticas e extremas, isso faz parte dele com certeza. Mas Batman é bem mais, muito mais do que essa única face doentia. Para começar Gotham é um ambiente massacrado e degradante, aí já entramos em questões sociais bastante sérias, e como disse acima, Miller aborda isso.
Batman também é um ser das sombras. Sua face heroica é uma criatura noturna que transmite medo. Miller transmite essa característica sem forçar para a matança gore demasiada. Com pouca cor e uma capa tremulando, aliado a um texto incisivo e cortante, temos as trevas da alma de Bruce Wayne esparramadas antes nossos olhos.
Batman também é um personagem triste. Não é para menos. A morte de seus pais é o primeiro ato de uma vida destruída em busca de redenção. A Mulher-Maravilha não conhece essa dor.
Superman conhece parcialmente, ele perdeu sua família também. Mas não conviveu com a mesma tempo suficiente. Já Bruce viu seus pais serem assassinados e, para piorar, em um momento de alegria: o garotinho dançava na frente dos pais depois de uma sessão de cinema. A cena nas mãos de Miller e Mazzuchelli já se tornou antológica.
Ao fim da minissérie, Gordon está esperando o Morcego, ele nos mostra uma carta de baralho...




George Perez ficou responsável pela Mulher-Maravilha.
Primeiramente como co-escritor ao lado de Len Wein e Greg Potter e como desenhista, mas logo depois, e ainda no inicio, no número 4, assumiria todo o roteiro e continuaria como desenhista, embora que, no meio da fase, cuidaria apenas do roteiro.
Perez recontou cada aspecto estabelecido ao longo de décadas com a Amazona, em um trabalho que foi o mais elogiado desse processo de reformulação editorial da DC. Praticamente não há críticas negativas a esse trabalho.
Primeiramente que Perez sempre foi fã assumido de Diana. E isso já conta bastante.
Segundo, se seus roteiros, primeiramente ao lado de Wein e Potter e depois sozinho, renderam histórias de nível bem acima da média, sua arte acompanha as histórias, é linda a cada quadrinho. Sua Diana é de uma perfeição corpórea e beleza verdadeiramente gregas.
Perez também voltou a introduzir nas histórias de Diana o elemento feminista e já no primeiro número.
As amazonas são reencarnações de mulheres assassinadas por homens que se isolam deles, vivendo em uma ilha paradisíaca.
Diana é moldada por Hipólita no barro.
Os deuses também são parte importante nessa reformulação e ocupam, na primeira saga "Deuses e Mortais" ou A saga de Ares, como também é conhecida aqui no Brasil, não apenas um lugar na cultura grega, mas também se questionam sobre sua própria vida entre os homens de modo geral.
Perez permaneceu mais de cinco anos com a Mulher-Maravilha, foram 64 edições de Wonder Woman #1 ao #62 e Wonder Woman Annual #1 e #2, voltando vários anos mais tarde para escrever as edições #168 e # 169. Sua fase é considerada emblemática e faz parte daqueles momentos em que um artista encontra uma personagem e decide fazer a obra de sua vida com ela, ao menos até àquele período de sua carreira.
A Diana de Perez é uma guerreira ainda jovem que parte para o mundo dos homens e lá conhece uma cultura inteiramente oposta àquela de Themyscira.
Perez consegue resgatar para a personagem aquele ar político e feminista das origens, mas o tom não é sombrio. Não é Batman atormentando a elite de Gotham. Ao contrário, Diana é tão radiante quanto Superman, que consegue desmascarar Luthor como o pretenso bom cidadão para os metropolitanos. Em muitas das capas, desenhadas também por Perez, a princesa sempre sorri.
O relacionamento de Diana com sua sexualidade também é abordado. Se seu criador, o psicólogo William Moulton Marston era adepto do sexo livre, em uma entrevista na Ilha Paraíso por Lois Lane, Diana afirma que todas as mulheres ali são bissexuais.
Também é relevante a criação de várias personagens. A mais marcante foi Mindi Mayer, porém as amigas de Diana, Júlia e Vanessa Kapatelis, mãe e filha, também renderam momentos extraordinários e Vanessa seria, ainda com Perez, transformada na vilã Cisne de Prata, numa releitura da Cisne de Prata original.
Perez terminaria sua fase com a Mulher-Maravilha de forma menos polêmica do que Byrne com o Superman. E já foi anunciado, pela DC Comics, o relançamento completo de toda a fase de Perez em Wonder Woman, esperemos que a Panini lance por aqui também.