quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

EU ERA UM HOMEM COM PODERES ANIMAIS: A estranha jornada do Homem Animal de Grant Morrison.
Há personagens que nascem grandes e há personagens com potência de serem grandes. Não há personagem ruins, há péssimos escritores.
Em Setembro de 1965, na revista Strange Advetures #180, Dave Wood e Carmine Infantino apresentaram ao mundo um desses personagens despretensiosos, Buddy Baker, o Homem Animal. ele ganhou seus poderes quando entrou em contato com a radiação extra-terrestre de um OVNI. A partir daí, ganha a habilidade de absorver qualquer capacidade de qualquer animal que estiver próximo. Esta é a origem desse personagem que hoje é o personagem central de uma das mais vigorosas fases dos Novos 52, escrita por Jeff Lemire.
Mas nosso foco aqui é bem anterior, e diz respeito à fase do escocês Grant Morrison. Nesse artigo me concentro em duas características centrais de Morrison em Animal Man, uma formal e outra de conteúdo: a metalinguagem e a melancolia, respectivamente.


Quando Morrison passou a escrever Animal Man, a partir da primeira edição, permanecendo no título até a edição 26, ele causou um verdadeiro reboliço no meio editorial.
Tudo bem, quadrinhos de super-heróis adultos já não eram tanta novidade assim, convenhamos, Alan Moore já esbanjava sua poesia em Monstro do Pântano, sua força política já havia sido sentida como um terremoto avassalador em V e acima de tudo em Watchmen, Frank Miller carregava de violência urbana o seu Demolidor, a sua Elektra e o seu Batman, e Neil Gaiman iniciava o sono dos justos com seu feérico Sandman. Sem falar nos romances gráficos e auto-biográficos de Will Eisner.
Mas o título de Morrison mostrava amplas novidades. Tanto de conteúdo quanto de forma.
No que diz respeito à forma, Morrison rasga a linha que separa o personagem do leitor, em outras palavras, ele faz com que o Homem Animal entre no nosso e converse com Morrison.
E o conteúdo das histórias de Morrioson também são diferentes dos mostrados por Moore ou Miller. Nesse aspecto, esse Homem Animal pode ser mais aparentado com Gaiman e Eisner. Há uma melancolia que perpassa toda a saga de Buddy Baker sob a égide de Morrison.
Essa melancolia ganha contornos muitas vezes sutis e até mesmo cômicos, diferentes da melancolia realista de Moore.
Aliás, por falar em realismo, Morrison parece caminhar em outra estrada daquela de Moore. Este coloca os super-heróis tal como seria se vivessem no nosso mundo; Morrison, ao contrário, diz claramente, há o meu mundo (do escritor) e o seu mundo (dos personagens).
Isso torna as histórias elegantemente melancólicas. Lembro "A morte do Máscara Rubra", (EUA, DC, Animal Man #7, 1988; BR, Ed. Abril, DC 2000 #13, 1991). Ele deseja voar como um super-herói e salta do alto de um edifício. Por momentos permanece no ar, como que pairando. A gente sente que há algo errado. A força da narrativa de Morrison nos empurra para que não aceitemos aquilo que parece ser a vontade de nossa alma, que esse personagem realize seu sonho de voar. Na página seguinte, uma mancha de tinta vermelha anuncia o ocorrido.



A melancolia da solidão da família também é registrado. Na história "Aves de rapina", (EUA, DC, Animal Man #6, 1988; BR, Ed. Abril, DC 2000 #11, 1990), que faz parte da mega saga Invasão!, Morrison nos fala, enquanto Buddy tenta desarmar uma bomba thanagariana, de um soldado infeliz do exército de Thanagar. É uma narrativa dupla: de um lado, as tentativas de Buddy para desarmar a bomba, do outro, a história do triste soldado alienígena.
Em Thanagar há um rito de passagem onde os homens devem mostrar, através de uma escultura, suas aptidões e assim determinar o seu futuro. Este soldado em questão, quando foi fazer esse rito, esculpiu uma obra de arte bastante pessoal, o que desagradou seu pai. Pois este esperava que o filho esculpisse uma cena militar, de guerra, de bravura mesmo. Mas o rapaz prefere falar mais dos problemas da alma do que dos problemas patrióticos. A cena que mostra o rapaz levando uma bronca do pai, que se sente envergonhado, pois o filho está dizendo que quer ser um artista e não um militar, é comovedora. Simplesmente o rapaz thanagariano coloca mão no coração, surpreso e amedrontado, pelos gritos de ódio do pai. Há uma certa relação com a história de muitas "ovelhas negras" da família aqui e do próprio Morrison - as grandes histórias sempre são auto-biográficas. Não sei se Morrison sofreu ou não alguma pressão familiar nesse sentido, mas que percebemos a opinião de Morrison sobre o assunto é inegável. Mesmo assim, o resultado atua contra o jovem artista. O pai pede uma segunda avaliação para o jovem, e nessa segunda vez ele agrada ao pai com uma escultura militarista.
Outro ponto interessante é o distanciamento de Morrison em relação ao que estava ocorrendo na DC; na época dessa história a editora publicava Invasão! um mega-evento que reunia todo o UDC e tratava da união de várias raças alienígenas que invadiam a Terra. Morrison não deixa de circunscrever seu título dentro dessa saga, mas permite um distanciamento. Nesse crossover o tema da invasão é deixado de lado em favor da história do militar thanagariano.
Outra melancolia que permeia essas histórias, e aí temos o ponto mais emocionante, mais verdadeiro, mais belo e poético e o mais triste também, é a melancolia da existência animal.
Ao longo das histórias, somos apresentados à macacos vítimas de experimentos científicos, às matanças violentas e cruéis de golfinhos, à envenenamentos de gatos e até mesmo à uma conversa onde um coiote resolve abandonar de vez o mundo desumano em que vive.
A questão animal é seriamente abordada por Morrison. Não há sentimentalismo barato aqui. Há muita poesia e mágoa sinceras em relação aos caminhos tortuosos aos quais a racionalidade levou e leva a condição humana.
Em "O evangelho do Coiote" (EUA, DC, Animal Man #5, 1988; BR, Ed. Abril, DC 2000 #7, 1990) Morrison nos convida a entrarmos no mundo de Looney Tunes. O Coiote vive em mundo onde "animal se volta contra animal", nas palavras do próprio escritor. O Coiote fica chateado com toda essa briga que nunca tem fim e resolve falar diretamente com seu Deus. Vai para o deserto e lá ascende aos céus e conhece o seu Criador. O Coiote fala da dor que é viver em um mundo onde os animais se agridem, mas o seu Criador fica zangado com os protestos e resolve punir o Coiote. Ele envia o animal para o nosso mundo e diz para ele que o seu mundo ficará em paz para sempre, desde que ele sofra por seu mundo eternamente. Ele vai viver em nossa realidade, vai sofrer e ser morto, mas ressuscitará e novamente sofrerá e morrerá eternamente, fazendo isso os animais do mundo do Coiote ficarão em paz. É uma história com uma metalinguagem refinada, o Criador que o Coiote conhece é o próprio Morrison. E essa história provocou protestos de agremiações religiosas nos EUA.



São nesses momentos que a melancolia de Morrison, sempre presente em suas melhores páginas, alcança os nossos olhos e despenca em torrentes de lágrimas.
Como vimos, a metalinguagem é outra característica de Morrison e encontra uma construção habilidosa nas páginas do Homem Animal, e culmina na apoteose de Deus Ex-Machina (EUA, DC, Animal Man #26, 1991; BR, Ed. Abril, DC 2000 #36, 1992) onde Buddy conhece Grant Morrison, que lhe revela que seu mundo é uma fantasia criada por uma empresa. Na verdade podemos afirmar que os 26 números que Morrison escreveu para Animal Man são em forma de um gigantesco diálogo metalinguístico entre o o mundo dos quadrinhos, personificado por Buddy e o nosso mundo, personificado por Morrison, com incursões pelo mundo dos desenhos animados.
Essa fase é uma das melhores em qualquer época das histórias em quadrinhos. Não apenas do Homem Animal ou da DC, mas da arte sequencial como um todo; Morrison é um escritor de alta estirpe, poeta metalinguístico sem concorrentes e defensor de causas políticas que o colocam como ícone de boa parte dos leitores de hqs. Suas histórias a princípio sempre são deslocadas e parecem caminhar sempre para a dissolução em um abismo, como ele mesmo diz para Buddy no número 26, o último que escreveu, da série. Mas à medida que as páginas vão se sucedendo, percebemos que estamos diante de um quebra-cabeças maravilhoso e que apenas o tempo pode fazer com que cheguemos a uma compreensão do todo. Ele sempre vai por partes sem se preocupar com o momento em si, e sim, alongando esse tempo, construindo uma trama que se solidifica à medida que avança.
Animal Man de Grant Morrison faz parte daquelas leituras obrigatórias que cada forma de arte possui e que são capazes de mudar a maneira como pensamos e vemos o real.
E o mais agradável nisso tudo é a maneira quase coloquial com a qual Morrison nos apresenta temas complexos e os desenvolve. As tramas se iniciam com uma simplicidade bem construída e página após página, vão tomando contornos cada vez mais insuspeitos, e Morrison nos mergulha num vórtice de ideias e afetos, atiçando nossos neurônios e nosso coração.
O sangue é vermelho em qualquer espécie.

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